Harmonização entre queijos e vinhos: será que vai “dar match“?
Autor(a)::
Hellen Dea Barros Maluly (MALULY, H.D.B.)
Farmacêutica e Doutora em Ciência de Alimentos
Endereço para acessar este CV: http://lattes.cnpq.br/2754275781355863
Publicação: 1 de outubro de 2021
Resumo
A combinação ou harmonização entre alimentos, ingredientes e bebidas é um tema que está na boca dos seres humanos desde os seus primórdios. No entanto, a ciência dos alimentos e da hospitalidade vêm criando métodos para se avaliar estatisticamente o real confronto entre as diferentes substâncias presentes nos diversos produtos e o seu impacto sobre os órgãos dos sentidos, com o objetivo de oferecer a experiência perfeita para se acreditar em momentos de mais prazer. Experimentos vêm sendo feitos ao redor do mundo e aqui, destacaremos uma pesquisa realizada por um grupo australiano da Universidade de Adelaide, que demonstrou quais os impactos da harmonização entre queijos cheddar e vinhos Shiraz, que pode dar início a algumas metodologias que são hoje usadas por cientistas sensoriais, chefs e sommeliers do mundo.
Palavras-chaves: combinação, harmonização , queijos, vinhos, umami.
Quais os motivos que nos levam a combinar alguns alimentos com certas bebidas? Por que os queijos podem ser harmonizados com tantas bebidas diferentes, como cafés, chás, vinhos e cervejas?
São questões que os cientistas querem, de alguma maneira, responder para verificar o que acontece com os nossos sentidos quando os provocamos com diferentes combinações de sabores. Reconhece-se que o que escolhemos individualmente, nenhuma pesquisa será capaz de responder. Mas algumas escolhas podem ter lá os seus motivos.
O vinho, quando degustado individualmente, envolve múltiplas sensações. As sensações visuais dos vinhos dependem diretamente da natureza química dos compostos que estão presentes na bebida, os quais podem transmitir, absorver e refletir a radiação visível de cores variadas, que vão desde um verde translúcido, até reflexos alaranjados ou fortemente violáceas. Sensações olfativas envolvem a ligação de compostos voláteis aos respectivos receptores que determinarão os diferentes atributos relacionados à aromas etílicos associados às frutas, ervas, madeiras, especiarias, e até um aroma de “couro” ou “celeiro” que é atribuído ao resultado do processo fermentativo realizado pela levedura Dekkera/Brettanomyces, que geram compostos voláteis como 4-etilfenóis, os quais geralmente são considerados uma falha no processo de produção do vinho, mas, em algumas situações, esta característica pode até premiar um vinho, quando encontrado em quantidades adequadas. Para as sensações gustativas, os principais atributos estão relacionados às variações em intensidades de dulçor, acidez e um leve amargor, provocado pela presença de compostos fenólicos nos vinhos (JACKSON, 2008).
Apesar de alguns estudos mostrarem uma certa quantidade de ácido glutâmico em vinhos (SOUFLEROS et al., 2003), o gosto umami não está associado a sensação gustativa destas bebidas, provavelmente por causa presença de flavonoides e outros compostos, que se sobressaem à presença do aminoácido glutamato na composição das bebidas, assim como no chá verde (HAYASHI et al., 2010; HAYASHI et al.; 2008). As sensações táteis, como a adstringência do vinho (aspereza e secura da cavidade oral) é proporcionada, pelo menos em parte, a ligação de protoantocianidinas (taninos) às proteínas da saliva. Esta ligação promove uma modificação na conformação das proteínas, o que leva a uma leve precipitação, reduzindo a lubrificação na e aumentando o atrito entre as superfícies orais, que podem, por sua vez, proporcionar um estímulo que é percebido como adstringência (JACKSON, 2008; BASTIAN et al., 2010).
E quando o vinho é harmonizado com algum alimento? Considera-se que alimentos possuem um impacto substancial sobre as características sensoriais dos vinhos e certas combinações podem suprimir ou realçar determinados atributos e estes fatores podem, inclusive, influenciar no preço que se paga por um jantar (KUSTUS et al., 2020.
Pensemos agora na complexidade desta harmonização. Um estudo realizado por pesquisadores australianos avaliou hedonicamente a percepção sensorial de dez vinhos Shiraz australianos e um tipo de queijo Cheddar. Na pesquisa 54 consumidores de queijos e vinhos e 22 sommeliers provaram a combinação. Os vinhos Shiraz foram escolhidos por possuírem um bom preço e também por serem muito consumidos na região e o queijo foi selecionado através de estudos anteriores que mostraram sua alta qualidade e boa combinação com esta variedade de vinho. Os resultados mostraram que o consumo de queijo Cheddar antes do vinho resulta na redução da duração do sabor, do aroma de ‘couro’ ou ‘celeiro’ e da intensidade de adstringência. Em alguns casos, o aroma da madeira e a acidez também se mostraram reduzidos (BASTIAN et al., 2010).
A supressão da percepção dos aromas e da acidez do vinho pode ser devido à alta quantidade de proteínas e gorduras presentes nos queijos maduros, que podem reduzir a volatilidade dos aromas e afetar na sua interação com receptores olfativos ou ainda evitar a difusão das substâncias que proporcionam dulçor, amargor e acidez através da saliva e o acesso aos receptores gustativos. Os gostos salgado e, principalmente o umami presentes nos queijos tendem a suprimir a acidez proporcionada pelos vinhos e modificar sua percepção sensorial. Já a adstringência é reduzida pelo contato dos taninos com as proteínas dos queijos, as quais competem com as proteínas da saliva pela ligação com estes compostos.
O queijo Cheddar, utilizado na pesquisa australiana, possui um destaque especial, pois estudos comprovam a alta concentração de substâncias umami na sua composição (DRAKE et al., 2007). Outros queijos como o suíço e parmesão, também possuem esta característica (YAMAGUCHI & NINOMIYA, 2000), podendo ser ótimos aliados para a harmonização com vinhos e outras bebidas.
Mesmo com todas essas pesquisas e conclusões, não é tão fácil demonstrar claramente as preferências alimentares de cada população, pois há muitos fatores envolvidos, os quais influenciam diretamente em nossas escolhas. De acordo com o filósofo Michel Onfray: “O gosto e o cheiro são os mais desacreditados dos cinco sentidos, pois nos revelam um ambiente e um homem que pensa e medita ser dobrado em um animal que cheira e saboreia” (ONFRAY, 1995). Queremos dizer que apesar de testes estatísticos e estudos darem uma base científica para o que se chama de ‘gosto’ e nos apresentarem alguns padrões, ao pensarmos com Onfray, o gosto não se coloca como identidade universal, sofrerá influências do meio, da cultura e principalmente das experiências sensoriais em que cada indivíduo pode ser afetado singularmente no encontro com as infinitas harmonizações possíveis com o que de fato nos interessa, a intensificação das nossa emoções (KUSTUS et al., 2021).
Um brinde aos encontros gastronômicos!!! Saúde!!!
Referências
- BASTIAN, S.E.P.;, COLLINS, C.;, JOHNSON, T.E. Understanding consumer preferences for Shiraz wine and Cheddar cheese pairings. Food Quality and Preference, v. 2010; 21, p.: 668–678,. 2010.
- DRAKE, S.L.;, CARUNCHIA WHETSTINE, M. E.;, DRAKE, M.A.;, COURTNEY, P.; , FLIGNER, K.;, JENKINS, J.;, PRUITT. C. Sources of umami taste in Cheddar and Swiss cheeses. Journal Food Science,. 2007; v. 72, n.( 6, ):p. S360-366, 2007.
- HAYASHI, N.;, CHEN, R.;, HIRAOKA, M;, UJIHARA, T.;, IKEZAKI, H. b-Cyclodextrin/SPR detection system for sensing bitter-astringent taste intensity of green tea catechins. Journal of Agriculture and Food Chemistry, 2010; v.58, p.: 8351-56, 2010.
- HAYASHI, N.;, CHEN, R.;, IKEZAKI, H.;, UJIHARA, T. Evaluation of the umami taste intensity of green tea by a taste sensor. Journal of Agriculture and Food Chemistry, J Agric Food Chem. 2008; v.56, p.: 7384-87,. 2008.
- JACKSON, R.S. Sensory Perception and Wine Assessment. In: Jackson RS. Wine Science – Principles and Applications. 3ª ed. Bullington, MA. USA: Elsevier, 2008.
- KUSTOS, M.; GOODMAN , S.; JEFFERY, D.W.; BASTIAN, S.E.P. Appropriate food and wine pairings and wine provenance information: Potential tools for developing memorable dining experiences. Food Quality and Preference, v. 94; n. 104297, 2021.
- KUSTOS, M.; HEYMANN, H.; JEFFERY, D.W.; GOODMAN, S.; BASTIAN, S.E.P. Intertwined: What makes food and wine pairings appropriate? Food Research International, v. 136, n. 109463, 2020.
- ONFRAY, M. La raison gourmande. Paris: Biblio essais, 1995. Tradução livre: [“Le goût et l’olfaction sont le plus décriés de cinq sens car ils montrent à l’envi combien l’homme qui pense et que médite est doublé d’un animal qui renifle et goûte”]
- SOUFLEROS, E.H.;, BOULOUMPASI, E.;, TSARCHOPOULOS, C.;, BILIADERIS, C.G. Primary amino acid profiles of Greek white wines and their use in classification according to variety, origin and vintage. Food Chemistry, 2003; v.80, p.: 261–273,. 2003.
- YAMAGUCHI, S.;, NINOMIYA, K. Umami and food palatability. Journal of. Nutrition,. 2000; v.130, p.: 921S-926S,. 2000.